Por Thiago Ermano Jorge *
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Nomear é definir (e excluir). Durante mais de um século, as palavras atribuídas à planta Cannabis sativa moldaram não apenas sua identidade social, mas também os direitos e restrições impostos sobre ela. A depender de quem nomeia — se o legislador, o empresário, o cientista, o médico ou o policial — a mesma planta pode se tornar remédio, mercado, droga, commodity ou ameaça.

Inspirando-se no sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930 – 2002), compreendemos que nomear é exercer poder simbólico: é impor uma visão de mundo como se fosse natural. O objetivo deste artigo é revelar como o ato de nomear “cannabis”, “maconha” ou “cânhamo” se tornou instrumento de dominação e disputa social.

“O poder de constituir o dado pelo enunciado, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou transformar a visão do mundo e, por conseguinte, a ação sobre o mundo.”
Pierre Bourdieu, O Poder Simbólico, p. 11

O pensador francês sustenta que o poder simbólico é um poder invisível, exercido com a cumplicidade dos dominados. Quando aceitamos sem questionar os termos “drogado”, “viciado” ou mesmo “recreativo”, estamos incorporando habitus historicamente construídos que reforçam o status quo.

Nomear é legislar: a origem colonial e penal da maconha

O termo “maconha” é carregado de histórico violento contra povos oprimidos e passou a ser usado oficialmente no Brasil logo na imposição das primeiras leis antidrogas do século XX. Mas já carregava um peso racial e social: era a planta dos negros e “índios”, dos pobres, dos marginais — e não da elite branca, o que não é verdade, comprovadamente pela ciência e pela história.

Nos EUA, o termo “marihuana” cumpriu função semelhante, durante a campanha proibicionista de Harry Anslinger. A Lei brasileira de 1938 (Decreto-Lei n.º 891) é cópia da campanha de 1937 do Bureau Federal de Narcóticos dos Estados Unidos. A palavra “cannabis”, por sua vez, foi mantida nos compêndios médicos, como sinônimo técnico, dissociado da carga social negativa.

Cânhamo: uma planta, dois destinos

Com o início da regulação recente da Cannabis sativa L. para fins industriais, pelo STJ, ANVISA e MAPA, o termo “Cânhamo” passa a ser (re)valorizado como uma solução sustentável.

O mesmo Estado que reprimiu cultivadores pessoais da planta, agora, indica que investirá em pesquisa, inovação e regulamentação.

Aqui, a disputa simbólica revela-se ainda mais nítida: a palavra “cânhamo” ressignifica a planta como vetor de progresso. Mas quem tem o direito de usar esse nome? Quem legitima essa transformação?

O campo da Cannabis e seus agentes

No campo social, descrito por Bourdieu, os agentes (cientistas, médicos, empresários, juristas) disputam o capital simbólico da legitimação. A medicina e a ciência conferem respeitabilidade ao que antes era criminalizado.

A nomeação torna-se uma luta pelo monopólio da classificação legítima. O termo “Cannabis medicinal” é legitimado pela Anvisa (RDC 327/2019), enquanto “maconha” permanece no discurso policial e midiático. Devemos avançar na redução de estigmas e na percepção do potencial da planta e suas tecnologias ancestrais.

Conclusão – A quem serve o silêncio das palavras?

Cada termo usado — “Cannabis”, “Maconha”, “Cânhamo” — carrega uma história de exclusões e reinvenções. Nomear não é neutro. A escolha da palavra que usamos para descrever essa planta determina o destino de comunidades, políticas públicas e tecnologias.

A disputa pelo nome é, na verdade, uma disputa por sentidos, por capital e por dignidade. Novas fases para a Cannabis no Brasil. Seria o momento de pensar diferente, nomear diferente e desenvolver diferente?

* Thiago Ermano Jorge – Diretor-Presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis e Cânhamo (ABICANN) e Pesquisador Interdisciplinar do Centro de Tecnologia e Inovação da Cannabis (CTICANN) – https://cticann.org